Por Josef David Yaari
“O primeiro setênio é o alicerce, o fundamento para que cada pessoa possa cumprir seus desígnios, a história que a si mesma se propôs.”
No primeiro setênio, nossas forças plasmadoras estão ocupadas na elaboração e maior definição de nossos órgãos, desde a substância branca do cérebro até o estabelecimento dos dentes próprios da pessoa. Ocorre assim o que podemos chamar de uma “adaptação da forma física” herdada dos pais, à vontade individual da criança. O ambiente físico, as circunstâncias sociais, o tipo de educação e as condições biológicas e psicológicas são assim usadas pelo ser da criança, que procura, então, a melhor forma de estabelecer seu fundamento físico para sua atuação.
Acredito ter fundamentado e demonstrado a concreta existência do Eu que está no centro de cada um de nós. É ele que guarda o “fogo sagrado dos deuses”, roubado por Prometeu do Olimpo. É ele que nos queima e nos faz “sofrer” a vida, representada pelo fígado que à noite se regenera, mas de dia é novamente devorado pela Águia.
É o custo que nós estabelecemos para a conquista de nossa liberdade!
Todos os estudos sobre o primeiro setênio, demonstram a alegria da criança por estar viva. Essa alegria pela vida, por sentir os músculos, o movimento do corpo com o grito de alegria, mesmo em situações muito ruins, é bastante visível e podemos dizer que o Eu da criança realiza a adaptação da “fôrma física” herdada dos pais, para poder atuar de acordo com sua “vontade individual”. É bom estar vivo. A criança revela a alegria de viver mesmo nas piores condições. A vida é boa porque sentir se no mundo já é uma vitória. E conseguir ainda ter a sensação do movimento da musculatura, da luz nos olhos, dos cheiros, das possibilidades de movimento e equilíbrio, dos sons, das palavras, do gosto da descoberta das cores, do saborear cada palavra, dita devagar pelo movimento da língua, das articulações… É isso: viver é muito bom.
Nesse processo a criança lança mão de febres “inexplicáveis”, das doenças infantis, cuja natureza pode ser compreendida quando se pode observar que por estas doenças ocorre a substituição de proteínas herdadas por proteínas provindas de sínteses próprias, individuais.
É observável como todos os órgãos passam por uma espécie de “reforma” que é finalizada pela substituição dos dentes de leite pelos dentes próprios. Rudolf Steiner apontou estes fatos, demonstrados depois pelos estudos da fisiologia e anatomia.
As atitudes de repressão da atividade do Eu, pela supressão de sintomas, como é feita por grande parte das substâncias alopáticas, é cada vez mais denunciada pela observação de um número crescente de médicos.
O pensar mecanicista que não tem acesso a essas percepções, alia-se facilmente a interesses de domínio e manipulação do ser humano, desenvolvendo uma série de repressores violentos contra essa “vontade individual”.
Assim a grande massa dos produtos da indústria farmacêutica alopática e da indústria alimentícia, vem atacando com muita violência a emergência do Eu, sem perceber este papel primordial do Eu como artífice, artesão e artista, levando as pessoas a apenas a se manterem seres gregários, simplesmente seres reativos a sensações e sentimentos, sem, portanto, desenvolverem o Eu individual! E, por outro lado, atacando o aspecto natural, vão criando pequenos “monstros” artificiais.
Outra forma de perturbar o desenvolvimento da criança é colocá-la frente à televisão que paralisa seus movimentos, invade seus sonhos próprios, tornando-a passiva física e animicamente. As imagens prontas substituem a capacidade de elaboração de imagens que nascem da vida interior da criança. Assim também os brinquedos prontos, acabados, fascinantes, onde a criança não tem nada a fazer senão ruídos, levam-na a quebrar esses artefatos e a brincarem com uma velha boneca de pano ou outros elementos mais simples. A falta de ritmo e atenção também dificultam esse processo de elaboração de seu corpo individual, sua base física.
A partir da cabeça, que é onde se concentram os órgãos dos sentidos e de onde irradia o processo de configuração de seu corpo com um todo, a criança cresce através das impressões sensoriais levadas para o seu cerne, permitindo a formação das representações e a configuração orgânica. Os fatos externos, além de suas disposições genéticas, formam os seus órgãos, principalmente ao observarmos sua natural tendência para a imitação não só dos estímulos físicos e psicológicos, mas também e, principalmente, das impressões sensoriais subjacentes que resultam em uma “imitação orgânica inconsciente” na conformação de seu corpo.
No terceiro ano de vida, chega um momento importantíssimo. Quando menos se espera, a criança de repente, em vez de dizer a si mesma, por exemplo: “Joãozinho está brincando, ela diz Eu estou brincando”, Quem se lembra desse instante, relata que é como se um raio atingisse nossa mente, É a partir daí que a criança começa a sair daquele nível “oceânico”, do ser no mundo para começar a situar-se perante o mundo. E então, inicia-se o sofrimento e a glória que é o motivo básico da filosofia, incluindo a arte, a ciência e a religião.
Qual é vínculo deste Eu com o mundo?
Quando a criança diz Eu a si mesma, ela também começa a dizer não aos outros!
E agora? Como fazer para educar?
Pois é, vivemos essa estranha situação de demorar um ano para chegar à já citada postura ereta, instável, mantendo-nos dependentes para o mamar e o trocar as fraldas, com a expectativa de uma atmosfera de “paz e harmonia”, num mundo cor-de-rosa, e, depois, ainda, dizemos não, negando a comida, o banho, a roupa, o dormir!
Por que é que os pais são quase sempre tão jovens, inexperientes e desajeitados quando recebem os filhos? Por que é que os passos mais importantes da vida, acontecem quando estamos menos preparados? Será que a vida é uma eterna armadilha?
Para as coisas e decisões essenciais, nunca estamos preparados!
O fato é esse mesmo! E não poderia ser diferente. Como é que queremos conquistar a nossa liberdade? Essa conquista pressupõe o erro e o desafio. Somos mesmo, obras abertas, com a capacidade, isto sim, do sempre apreender. O erro é a nossa garantia para a autonomia. Precisamos nos dispor ao aprendizado com o próximo, com o companheiro, com o filho!
Até esse momento do não, pegamos o Joãozinho e levamos ao banho ou trocamos sua roupa sem discutir, sem explicar. Agora ele diz “não quero”. O que fazer? Explicar adianta? Será que um discurso sobre o valor da higiene e da alimentação, é suficiente? É claro que podemos usar a força: pegamos o Joãozinho pelos “fundilhos” e lhe “aplicamos” um bom banho. Mas todo dia…??? Surge, no entanto, algo novo. Se nós, por exemplo, começamos a contar a história:
“Joãozinho, hoje foi um grande dia! Você se lembra? Eu mesmo vi você firme no trabalho! Puxa! Você é uma pessoa muito importante. Percebi como você trabalhou na construção de uma casa, um verdadeiro prédio! (E os olhos do Joãozinho começam a brilhar de surpresa e contentamento). Agora, todos os trabalhadores vão para casa descansar e tomam seu caminho. Estão com as roupas de trabalho, mas vão se trocar, ficando com o corpo limpo e com uma nova roupa. E você? Você também quer entrar em sua casa, depois de tanto fazer hoje, não é? Ih! Mas onde você vai se lavar? Como fazemos? E ainda bem que nesse caminho encontramos essa cachoeira. Vamos lá, João, vamos ao banho!”
E o chuveiro é a linda cachoeira e o pijama é a roupa ideal para chegar em casa e nosso Joãozinho, como por encanto, está felicíssimo no banho!
Ah! É claro que não é tão fácil assim, porque além de paciência, precisamos ter a arte e a vontade de, todo dia, fazer isso, mesmo porque, quando no outro dia chamamos o menino para o banho e repetimos a mesma história, o Joãozinho, com olhar maroto, nos diz: “Hoje não trabalhei, não construí casa alguma, também não sou caçador, nem príncipe e não vou tomar banho!” Ocorre que a criança sente muito bem quando fazemos a educação mecanicamente, por memória, sem a participação, por inteiro, de nosso Eu. Nesse momento ela despreza essa atitude, como o faríamos com a namorada ou o amigo que apenas cumprimenta de memória. A criança tem a expectativa constante, diária, minuto a minuto, de que haja uma atitude de Eu para Eu. É difícil, mas a experiência comprova que quando mantemos o interesse real (INTER ESSE, do latim ESSE estar ou ser e INTER=: dentro), podemos contar a mesma história, repetindo-a, diariamente, em alguns casos, por mais de um ano e, ainda assim, a criança pede que seja repetida mais uma vez, com as mesmas palavras, a mesma história!
Todos nós, buscamos uns nos outros o Eu de cada um. Gurdjieff dizia que na maior parte do tempo, estamos dormindo. Temos dificuldade de mantermo-nos atentos o tempo todo. Podemos afirmar com toda segurança que nossos problemas ocorrem basicamente por falta de atenção. Quando a criança pede a presença constante do Eu, em nós, ela está treinando essa atenção. Por isso é tão difícil educar!
Podemos dizer que a partir do terceiro ano de vida, a criança estabelece a relação imaginativa com o mundo. Essa relação se mantém até, mais ou menos, os 9 anos de idade. Ela está repetindo o processo de crescimento da humanidade (a ontogenia repete a filogenia). E a época dos contos de fadas, mitos, grandes imagens que contém o passado, o presente e o futuro de nossa história. Ainda hoje, principalmente entre os não-letrados, encontramos essas imagens poderosas que guardam uma incalculável sabedoria, que só é negada à criança por ignorância da necessidade de consciência histórica. Imagens são móveis, mais amplas, abertas, passíveis das mais fascinantes interpretações. Chapeuzinho Vermelho pode ter uma perfeita interpretação psicanalítica, marxista, espiritualista ou outra ideologia, sendo que cada um acredita honestamente que o conto atesta a “sua” verdade. No entanto, os contos de fadas, como as mitologias, estão além do intelecto. Não cabem nas caixinhas ou fôrmas que nossas representações mentais querem estabelecer. Neles não há moralismos ou mensagens. Para demonstrar isso melhor, vamos transcrever essa imagem contemporânea, retirada de O Pequeno Príncipe de Antoine Saint-Exupèry):
“Tudo é pequeno onde eu moro. Preciso de um carneiro. Desenha-me um carneiro.
Então eu desenhei.
Olhou atentamente e disse: Não! Esse já está muito doente. Desenha outro…
Desenhei de novo. Meu amigo sorriu com indulgência:
— Bem vês que isto não é um carneiro. É um bode… olha os cifres….
Fiz mais uma vez o desenho.
Mas ele foi recusado como os precedentes: Este aí é muito velho. Quero um carneiro que viva muito.
Então, perdendo a paciência, como tinha pressa de desmontar o motor, rabisquei o desenho ao lado. E arrisquei:
— Esta é a caixa. O carneiro está dentro.
Mas fiquei surpreso de ver iluminar-se a face de meu pequeno juiz:
— Era assim mesmo que ou queria! Será preciso muito capim para esse carneiro?
— Por quê?
— Porque é muito pequeno onde eu moro…
— Qualquer coisa chega. Eu te dei um carneirinho de nada.
Inclinou a cabeça sofre o desenho:
— Não é tão pequeno assim… Olha! Adormeceu…
A criança não pode aceitar uma definição estática, acabada. Ela só pode conviver com algo móvel, vivo, que lhe dê condições de crescer. Por isso é que ela pode erigir castelos com blocos de madeira, ou areia, para logo em seguida derrubá-los. É seu metabolismo, sua metamorfose. Ela forma e plasma o seu corpo, formando a “casa” que irá abrigar, no segundo setênio, sua base psicológica. Aos cinco anos, em média, ela entra na chamada “idade filosófica”, com perguntas de conteúdo extraordinário que revelam relações inesperadas como os contos Zen Budistas. Em seguida, entre os seis e sete anos, ela demonstra uma “virada” que é muito pouco compreendida. Um dos sintomas é, por exemplo, fazer imagens espelhadas em desenhos ou letras. Isso é a indicação de que as forças formativas já não estão mais tão ocupadas com a adaptação do organismo físico ao Eu, passando a ocupar-se da formação dos conteúdos psicológicos. É a fase de transição, o momento de metamorfose de uma atividade para outra.
Estudando a atual neurociência já foi demonstrado que dos 5 aos 7 anos, ocorre o término da mielinização dos nervos, ou seja, a bainha de mielina recobre os nervos que, assim, protegidos, vão encerrando sua fase de reorganização física do corpo. Por isso a intelectualização precoce, mormente a alfabetização, pode ser muito danosa ao organismo, pois exige uma dedicação extra das forças formativas, que estão ocupadas com o físico, para o atendimento de uma solicitação psicológica. Os resultados são as conhecidas dislexias, dislalias ou outros sintomas tão comuns no mundo atual, além do fato de que a perturbação da organização do corpo para que este possa ser instrumento do Eu, a longo prazo, poderá causar doenças crônicas de mineralização (cálculos renais, hepáticos, etc.).
O primeiro setênio é o alicerce, o fundamento para que cada pessoa possa cumprir seus desígnios, a história que a si mesma se propôs.