Satish Kumar é um sábio indiano de 75 anos que vive atualmente na Inglaterra. Ele foi monge jainista e importante ativista em prol do desarmamento nuclear. Hoje, é editor da revista inglesa Resurgence (http://www.resurgence.org/), fundador e diretor de programação do Schumacher College international centre for ecological studies, e da The Small School. Ele insiste que a reverência à natureza deve estar no centro de todo debate político e social. Acusado por alguns de que seus objetivos são pouco realistas, ele se defende afirmando: “Vejam o que os realistas nos fizeram. Eles nos conduziram à guerra e às mudanças climáticas, à pobreza em escala inimaginável, à destruição ecológica no atacado. Metade da humanidade hoje vai para a cama com fome por causa dos líderes realistas que governam o mundo. A quem me acusa de ser ‘pouco realista’, eu pergunto: O que o seu realismo produziu?. Realismo é um conceito superado, desgastado e totalmente exagerado”.
Há poucos dias, Satish Kumar esteve em Lisboa, para “celebrar a entrada da primavera”. Na Fundação Calouste Gulbenkian, ele proferiu uma palestra sobre o conteúdo do livro Small is beautifull (O negócio é ser pequeno), de E.F. Schumaher. E concedeu a entrevista que transcrevemos abaixo, sob o título “A natureza tem a solução”.
Quantas vezes já o chamaram de ingênuo ou irrealista?
Muitas, muitas vezes. Políticos, presidentes de empresas, estudiosos, até jornalistas… (risos). Dizem que as minhas palavras são impossíveis e que sou demasiado inocente e idealista. Mas a minha resposta é: o que têm feito os realistas? O mundo tem sido governado por eles e hoje temos crise econômica, crise ambiental, guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia, pobreza. O nosso realismo não é sustentável. Pusemos um preço em tudo. A floresta tem preço, os rios, a terra, tudo se tornou uma mercadoria. Talvez tenha chegado o momento de os idealistas fazerem alguma coisa. Esta é a minha resposta. Se sou idealista, não faz mal. A sustentabilidade exige um bocado de idealismo, de inocência.
Então, qual a resposta de um idealista à crise atual?
Esta não é uma crise econômica, é uma crise do dinheiro. E o dinheiro é apenas uma ideia, um número no computador. Os realistas criaram este problema artificial e estão preocupados com a crise, voam pelo mundo, vão a Bruxelas, reúnem-se com banqueiros. Mas a terra continua a produzir alimentos, as oliveiras a dar azeite, as vacas a dar leite e os seres humanos não perderam as suas capacidades. Eu diria, regressemos à natureza. A natureza tem a solução, dá-nos tudo o que precisamos, alimentos, roupas, casas, sapatos, amor, poesia, arte.
Como por essa ideia nas mãos dos líderes políticos?
Por exemplo, Portugal devia ter mais dos seus próprios alimentos, roupas, sapatos, mobília, tecnologia. A globalização da economia é um problema. Estamos importando tantos produtos da China… Tudo isso se traduz em combustíveis fósseis para o transporte, com efeitos no clima. Além do mais, estamos chegando a um pico do petróleo. Quando se esgotar o que faremos? A economia local deveria ser a verdadeira economia; a economia global seria como a fina cobertura de açúcar em cima de um bolo, com apenas entre dez a 20% da economia.
Mas em muitos casos é mais barato importar…
Sim, mais barato em termos de dinheiro, mas não em termos de meio ambiente, porque não adicionamos todos os custos. Este é um desafio que lanço aos políticos, empresas, cientistas e jornalistas: o valor deve ser colocado no solo, nos animais, árvores e rios, nas pessoas, não no dinheiro. Se não o fizermos, dentro de cem anos teremos uma crise ainda maior. O dinheiro é apenas um bocado de papel ou de cartão, uma conta no banco. É uma medida da riqueza, como quando usamos uma fita métrica e dizemos que esta mesa tem dois metros de comprimento por um de largura. É da mesa que precisamos, mas para nós a fita métrica é mais importante. O dinheiro é útil, claro, mas é só isso.
Parece uma ideia difícil de concretizar. Por onde começar?
Mudando a forma de pensar. Podemos imprimir notas, criar dinheiro criando mais dívida. Mas se poluirmos os nossos rios e envenenarmos as nossas terras, não os podemos substituir. Devemos viver como peregrinos, não como turistas. O turista é egocêntrico, quer algo para ele próprio, bons hotéis, restaurantes e lojas. A sua atitude é a exigência, quer sempre mais e melhor. O hotel, o táxi ou o serviço não era bom o suficiente. O peregrino é humilde, deixa uma pegada leve na Terra, respeita a árvore e agradece-lhe pela sombra e frutos. A mente egocêntrica tem de mudar para respeitarmos a natureza.
Hoje conhecemos melhor as marcas dos automóveis do que os nomes das árvores…
Exatamente. Por isso, antes de mais nada precisamos trazer a natureza para a cidade, promover uma literatura ecológica. Não conhecemos a natureza porque a exilamos, temos medo dela. Não saímos de casa porque está demasiado frio, neve ou chuva. Precisamos estar confortáveis, civilizados. Na verdade, somos demasiado civilizados… (risos). As pessoas das cidades, como Lisboa, precisam abrir o coração à vida selvagem, caminhar na natureza. O fim-de-semana devia ter três dias para que, pelo menos, um dia pudéssemos andar a pé no campo. Mas não de carro porque assim não se vê nada. Quando caminhamos vemos as flores, a relva, as borboletas, as abelhas. Vemos e experimentamos tudo, não é um conhecimento dos livros.
Mas podemos estar na natureza e não reconhecer a importância de uma borboleta ou de uma abelha.
Não basta observar a natureza como um objeto de estudo. Isso é uma separação muito dualista. Só valorizamos a natureza se a experimentarmos, se nos tornarmos parte dela. A natureza não está só lá fora, nas árvores, montanhas, rios e animais. Nós somos a natureza. E ela tem valor intrínseco. Falamos de direitos humanos, mas tambem precisamos falar dos direitos da Natureza. Os rios têm o direito de se manterem limpos, as florestas têm o direito a permanecer de pé.
Quando tinha quatro ou cinco anos, a sua mãe disse-lhe para começar a andar e aprender com a natureza. Para nós será demasiado tarde?
Tal como minha mãe me ensinou a andar na natureza, gostaria que o mesmo acontecesse na nossa sociedade. Devemos educar as nossas crianças no amor pela natureza, aprendendo na natureza e não sobre a natureza, com livros e computadores. Gostaria de ver os pais levar os filhos para a natureza e a deixá-los subir nas árvores, escalar montanhas e nadar nos rios. Para as crianças não é tarde demais, elas estão prontas para isso. Talvez para os adultos seja tarde, até porque eles têm medo da natureza. Mas até eles podem descobrir que passariam a estar mais inspirados, teriam mais poesia, música e arte. Nossa sociedade está se tornando cada vez mais banal e prosaica.
Toda a sua vida você caminhou. Qual foi a viagem mais importante?
A mais importante caminhada que fiz, da Índia para a América (de 1962 a 1965), foi inspirada pelo filósofo britânico Bertrand Russell, que protestou contra as armas nucleares. Quando ele tinha 90 anos foi preso por isso. Uma manhã, quando eu tinha 25t anos e bebia café numa esplanada com um amigo, disse-lhe: “Aqui está um homem que, aos 90 anos, vai para a prisão pela paz no mundo. O que estamos, nós, jovens, a fazer aqui sentados a beber café?”. Isso foi a inspiração. Eu e meu amigo fomos aconselhados por ela a partir sem dinheiro, porque a paz vem da confiança e a raiz da guerra é o medo. Se queremos paz temos de ter confiança nas pessoas, na natureza, no universo. Durante dois anos e meio caminhei 13 mil quilômetros sem qualquer dinheiro.
E como conseguiu sobreviver?
Fiquei em casa de pessoas que ia conhecendo. Quando não tinha dinheiro dizia que era a minha oportunidade para fazer jejum. Se não tinha um teto, era a oportunidade para dormir sob as estrelas. Antes de partir, na Índia, disseram-me: “Vais a pé, sem dinheiro, podes não regressar”. E respondi: “Se morrer enquanto caminhar pela paz isso será a melhor morte que poderei ter”. Assim, caminhei pelo Paquistão, Afeganistão, Irão, Azerbaijão, Armênia, Geórgia, Rússia, Bielorrússia, Polônia, Alemanha, Bélgica. Na França peguei um barco, apoiado pelos habitantes de uma pequena localidade, e fui até a Inglaterra, onde conheci Bertrand Russell. Ele me ajudou com os bilhetes de barco para Nova York. Daí caminhamos até Washington, onde conhecemos Martin Luther King. Foi uma demonstração de que podemos viver sem dinheiro e fazer a paz conosco, com as pessoas e com a natureza. Neste momento, a humanidade está em guerra com a natureza, estamos a destruí-la. E seremos perdedores se vencermos. A menos que façamos a paz com a natureza não poderá haverá paz na humanidade.
Qual a sua maior preocupação?
A minha maior preocupação é que a humanidade não acorde a tempo de resolver os desafios. Talvez estejamos demasiado obcecados com os nossos padrões de vida, com a dívida, o dinheiro. A sociedade industrial tem lutado pelo crescimento econômico a todo o custo. Mas também tenho esperança na humanidade, num despertar de consciências. Cada vez mais jovens me dizem que temos de cuidar da Terra e que o crescimento econômico não é suficiente, precisamos de bem estar. Se as pessoas não estão bem, de que serve o crescimento econômico? É um bom começo. Até porque há abundância na natureza. Quantas azeitonas dá uma oliveira? De uma única semente, lançada à terra centenas de anos antes, obtemos milhões de azeitonas. Isso é a abundância e generosidade da natureza.
O alerta para a crise do meio ambiente tem mais de meio século. E hoje o problema está longe do fim. É uma mensagem difícil?
As grandes mudanças constroem-se lentamente. Quanto tempo demorou para o apartheid acabar? Nelson Mandela esteve preso 27 anos. Mas o apartheid acabou. O mesmo se passa com os direitos humanos. Quando estive com Martin Luther King, em 1964, os negros não tinham direito ao voto. Hoje temos um homem negro na Casa Branca. E quanto tempo demorou para o muro de Berlim cair? Muito tempo, uma luta longa. Não sabíamos quando o muro iria cair, quando o apartheid iria acabar. Não precisamos saber. Estamos construindo um movimento ambiental e o momento vai chegar.
De que precisamos para ser felizes?
Aprender uma única palavra: celebração. Temos de celebrar a vida, a natureza, a abundância humana. As pessoas não são felizes porque não têm tempo para celebrar. Estão sempre ocupadas, vivem demasiado depressa. Os maridos não têm tempo para as mulheres e as mulheres não têm tempo para os maridos. Os pais não têm tempo para os filhos. As pessoas não têm tempo para celebrar a natureza. É preciso caminhar mais devagar abrandar para chegar mais longe, apreciar o que temos em vez de ignorar o que já temos e querer mais. Temos muita roupa no armário, mas ignoramos esse fato e vamos ao shopping comprar mais. O mundo tem o suficiente para as necessidades das pessoas, mas não para a sua ganância, já dissera Mahatma Ghandi. O universo é um grande presente para nós todos.