Fonte: A Tarde
A meditação chegou ao Ocidente como mais um item da lista de atrações exóticas orientais. Quase um século depois, a prática é uma receita médica. Está prescrita para auxiliar no controle da dor, da artrite, dos efeitos colaterais do câncer. Na vida de Ricardo Abude, 52, a meditação chegou como chega para a maioria das pessoas: um remédio para a ansiedade e o estresse. “Não queria seguir adiante freneticamente, sem saber o motivo e sem nenhum controle sobre mim”, diz ele, engenheiro eletrônico que, hoje, 20 anos após iniciar-se na prática oriental, atua como coordenador do Centro de Meditação de Salvador (CMS). A instituição é afiliada à Self-Realization Fellowship, fundada por Paramahansa Yogananda, iogue e guru indiano, responsável por difundir a prática da meditação no Ocidente e cuja história é contada no filme Awake (2014). “As grandes religiões orientais já conheciam os benefícios da meditação há 2.500 anos. A medicina moderna agora mostra que a prática muda o funcionamento de algumas áreas do cérebro, e isso influencia o equilíbrio do organismo como um todo”, explica Abude. Homem de sorriso farto e intermitente, usado para pontuar suas frases, ele fala, nesta entrevista à Muito, sobre os critérios para a prática da meditação, os aplicativos que prometem um estado meditativo e sobre os pontos escuros da mente.
A meditação está ligada às religiões orientais, embora muitos a vejam como algo menos metafísico e mais técnico. A meditação está mais para algo transcendental ou para o suor e o treino?
A meditação age na tentativa de clarear a mente, para nos oferecer paz, calma e capacidade de lidar com as fontes de estresse, que hoje não são poucas. É um instrumento que nos dá domínio sobre as emoções. A gente vive estressado, ansioso, com medo. Ao meditar, o simples fato de você começar a jogar para fora o estresse, a ansiedade e o medo, faz com que você comece a acordar com uma outra clareza para a vida. Eu diria que a meditação é, em base, técnica e suor. Você pode usá-la para melhorar sua condição esportiva – na última Copa, se falou em utilizá-la como preparação para os jogos -, para melhorar seu desempenho nos negócios – Steve Jobs era um adepto. Mas você pode usar a meditação, também, para entender os grandes mistérios da vida, o que existe de divino dentro de você.
É possível estabelecer critérios para a prática, um “como fazer”?
Existem vários mestres que ensinam meditação. E existem vários não mestres também (ri). Se você digitar “técnicas de meditação” no Google, vão aparecer milhares. Mas a meditação é um processo gradual. É como uma pessoa que leva uma vida sedentária e entra numa academia de musculação. Qual é a primeira coisa que um professor de educação física vai fazer? Vai montar um método gradual, até chegar aos 200 quilos. Como qualquer treinamento, a meditação deve ser aplicada de forma natural e gradual. Assim que você começa, precisa de um lugar silencioso, escuro, para que a luz não perturbe. Você precisa de uma série de elementos protetores que vão ajudar a produzir o relaxamento da lógica. Um ponto fundamental é o que se chama de âncora, o foco para qual você vai dirigir sua atenção, como a própria respiração ou o movimento do abdômen.
Há aplicativos que dizem entregar essa “âncora”, através de músicas, cantos ou sons. É possível alcançar um estado meditativo dessa forma?
Esses instrumentos, como ir a uma praia bem relaxada ou ouvir música, por exemplo, acalmam, mas num nível muito superficial. Repetir coisas que são positivas, usando a plasticidade cerebral (capacidade que o cérebro tem em se remodelar em função das experiências), acalma. Mas a meditação jamais será profunda o suficiente se você contar com qualquer coisa que não seja você mesmo. Se você está usando um CD da (cantora) Enya, isso te conduz a um estado mais relaxado. Mas os estados profundos da consciência, que você consegue com a meditação, não dependem de nada que seja externo. Até porque, no dia em que você não puder contar com algo externo, você não chega lá.
O que seria “chegar lá”?
Para responder a essa pergunta, é preciso entender como nosso cérebro trabalha. Cada neurônio mantém uma conexão com outro neurônio, através das sinapses. Vamos pegar uma qualidade que almejamos: calma. Cada qualidade que você manifesta corresponde a uma determinada combinação de neurônios, que possuem uma determinada sequência de sinapses. Então, suponhamos que a calma necessite de quatro neurônios, sendo que a conexão entre esses neurônios precisa, necessariamente, seguir uma determinada sequência. A liga-se a B, que liga-se a C, que chega a D. Se eu tenho isso, sou uma pessoa calma. Mas, se qualquer uma dessas condições não existir – um neurônio está desligado ou uma conexão não segue o padrão -, eu não consigo ser uma pessoa calma. O que as técnicas de meditação fazem é levar a pessoa a direcionar uma energia ao cérebro, capaz de iluminar os pontos escuros.
A iluminação desses pontos não poderia ser alcançada com uma boa noite de sono, por exemplo?
O que a meditação produz é uma energia consciente. Você injeta tanta energia no seu cérebro, de forma sistemática e voluntária, que você começa a iluminar áreas que estavam escuras e, a partir disso, começa a construir conexões. Esse é um esforço consciente que o sono não traz. A meditação é uma musculação mental. Todo mundo que medita começa a desenvolver qualidades que não tinha e se livrar de maus hábitos que tinha. Esse é um processo que começou a ser explicado no início do século 20, com a ida de Paramahansa Yogananda para os Estados Unidos e os estudos da física quântica, que também começaram nesse período, especialmente os trabalhos de Einstein.
Quanto tempo é preciso meditar para ter algum resultado?
O que determina o progresso individual numa academia é a regularidade e a qualidade que você faz os exercícios. Com a meditação é a mesma coisa. A velocidade depende da regularidade e da intensidade que você pratica. Tem pessoas que começam a meditar e, em três anos, atingem um nível alto de concentração e benefícios. Isso porque essa pessoa é mais intensa, regular e aplicada na prática da meditação.
As pessoas, muitas vezes, acham que precisam meditar para se ver livre dos problemas…
É importante entender que lutar contra os sentimentos negativos não vão fazê-los sumir. Você pode usar as situações como uma base para sua meditação – por exemplo, a sua inquietude pode ser usada como suporte ao se transformar em objeto de observação da sua mente durante a meditação. Atrás dessa inquietude está um estado desperto, pleno de sossego. A inquietude é apenas a superfície. Se você souber usar os acontecimentos difíceis, eles se transformam em seus aliados.
E qual é a maior dificuldade do meditador iniciante?
A dificuldade de se concentrar e a dor no corpo. Dez em cada dez pessoas que começam a meditar têm esses obstáculos. Ela começa a meditar e descobre que não tem domínio nenhum sobre o corpo. Um pré-requisito para a meditação é você manter a imobilidade corporal. Mas se eu digo para qualquer pessoa ficar quieta por 15 minutos, o corpo dessa pessoa começará a incomodar, a coçar, a gerar dor. As dores corporais e a inquietude são um tremendo obstáculo para quem começa. Daí a importância de você tentar aplicar as técnicas de meditação (uma série de exercícios tanto físicos quanto mentais que devem ser realizados diariamente), que te levarão a um estágio intenso de concentração. Você precisa se concentrar naquela técnica para fazê-la bem. Mas a primeira coisa que a meditação nos trará é consciência de que não temos nenhum controle sobre o corpo. Nas primeiras tentativas de meditar, você descobre que o tempo de sua meditação acabou, e você passou a meditação inteirinha pensando em toda a espécie de coisa sem nenhum controle sobre seu consciente.
Hoje se fala muito no conceito de meditação informal, ou de práticas de mindfulness (atenção plena) – estratégias que saem da meditação formal, sentada, e envolvem atividades cotidianas, mantendo a atenção naquela ação. Como chegar a esse estágio meditativo nas atividades cotidianas?
A tendência de nosso cérebro é a inconstância, e domá-lo não é tarefa fácil. Há centenas de anos, diferentes tradições culturais, filosóficas e religiosas buscam as melhores técnicas para acalmar a mente e alcançar um estado de consciência plena. Se antes já era difícil, imagina agora. Diria que a meditação informal é a última lição do curso, porque inicialmente você precisa de elementos protetores. Ficar em silêncio e imóvel já um desafio imenso. Agora, o objetivo de todo o processo meditativo é permitir que a pessoa construa esse ambiente interno de tal forma que ela é capaz de realizar suas atividades cotidianas e não perder nada ou quase nada do estado de clareza conquistado.
A chamada Geração Z, nascida nos anos 1990 e criada a partir de tantos estímulos diferentes, lida de forma diferente com a necessidade de parar ou de esvaziar a mente. O senhor acha que, no futuro, a meditação estará menos presente em nosso cotidiano?
Primeiro, é preciso dizer que, mesmo agora, em que julgamos a meditação como uma prática popular, pouquíssimas pessoas a praticam de fato. Difícil dizer como será a busca por práticas meditativas no futuro. Mas imagine um mundo em que a maioria das pessoas fossem desprovidas de ansiedade. Com certeza, não é esse mundo em que vivemos. A sociedade de pessoas que não meditam é essa sociedade que a gente já conhece.
Para saber mais sobre meditação e a vida de Paramahansa Yogananda:
Em “Autobiografia de um Iogue”, Paramahansa Yogananda oferece um verdadeiro portal para a compreensão da filosofia indiana narrando sua infância, a peregrinação em busca de seu mestre espiritual, a vida de cada um dos mestres de sua linhagem (Mahavatar Babaji, Lahiri Mahasaya, Sri Yukteswar), a fundação de uma escola baseada nos princípios da ciência da Yoga, sua vinda para a América e uma peregrinação pela Europa e Oriente, onde teve contato com grandes santos e mestres espirituais da época. É também um passo inicial seguro para quem deseja conhecer a ciência da Kriya-Yoga, técnicas científicas avançadas de meditação iogue. Edição completa, editada pela Self-Realization Fellowship, organização espiritual sem fins lucrativos fundada por Paramahansa Yogananda em 1920, com sede internacional nos EUA.
Considerado um best-seller, integrante da lista dos cem maiores livros espirituais já publicados em todo o mundo, é editado há mais de 60 anos, atualmente em quase 30 línguas e é uma das maiores revelações já publicadas no Ocidente sobre as profundezas da mente e do coração hindus e a riqueza espiritual da Ciência da Yoga. Livro de cabeceira de famosos como George Harrison, Steve Jobs, Gilberto Gil, entre outros.
Sobre o filme “Awake – A vida de Yogananda”: https://goo.gl/RKZ2jF