São Francisco de Assis amou todas as criaturas de Deus, sem
distinção. Santo protetor dos animais e do meio ambiente,
ele nos ensina que cuidar do planeta é uma atitude religiosa
e inspira o teor da encíclica Laudato Si, lançada pelo papa
Francisco como um grande alerta à humanidade
Com pés descalços e batas remendadas, São Francisco (1182-1226) perambulava pela cidadezinha italiana de Assis, a 184 quilômetros de Roma, e arredores. Enquanto a sociedade da época enfatizava a inclinação humana ao pecado, o religioso preferia louvar as belezas da Criação. Reverenciava as virtudes do homem e a perfeição da natureza. Observava em êxtase o voo dos pássaros. Dormia sob as estrelas. Inalava a brisa perfumada dos campos. O planeta era sua casa sagrada.
Mas isso foi depois que o jovem festeiro, batizado como Giovanni di Pietro Bernardone – o Francesco foi acrescido pelo pai, um rico comerciante, em homenagem à França – rompeu com a rede de confortos que o amparava. Entre outros motivos, porque em três ocasiões ouviu do Cristo na cruz: “Vai, Francisco, e repara minha Igreja, que está em ruínas”.
O pedido foi literalmente atendido. A igrejinha de São Damião, perto de Assis, recebeu os devidos cuidados. No entanto, o episódio representou um chamado mais profundo. Era o Senhor convocando-o a reanimar a fé dos fiéis com seu entusiasmo e simplicidade.
O auge dessa transformação culminou com a entrega definitiva aos desígnios de Deus. Na cena memorável do filme Irmão Sol, Irmã Lua (1972, de Franco Zeffirelli), que narra a biografia do santo, o belo rapaz se despe em praça pública e, renascido, atravessa o portal da cidade, rumo à missão de semear o evangelho junto dos miseráveis e da natureza. Logo outros adeptos se uniram a ele e, com a bênção do papa Inocêncio III (1161-1216), formou-se a ordem religiosa Franciscana ou Ordem dos Frades Menores (OFM), alicerçada no amor a tudo e a todos, bem como no desapego material. “Em cada criatura, Francisco experimentava a expressão do amor criador de Deus e, por isso, nutria pelos bens da natureza um profundo senso de afeto e cuidado, considerando-se, de fato, irmão de todos e também da criação”, explica frei Gustavo Medella, coordenador de Comunicação da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, com sede em São Paulo. É dessa perspectiva, lembra o religioso, que nasce o famoso Cântico das Criaturas, no qual São Francisco agradece a Deus por criações como o irmão Fogo, a irmã Lua, a irmã Água. “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água, útil e humilde, preciosa e casta”; “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas”.
Precursor da ecologia
“Para o santo, tudo era digno de amor e respeito, nada existia para ser explorado, utilizado de maneira egoísta, irracional, exploratória, e sim para aproximar o ser humano de Deus, para torná-lo sempre melhor, mais sensível, consciente e amoroso”, esclarece o frei Medella.
A visão de mundo do “poverello” (pobrezinho, em italiano), como São Francisco ficou conhecido, inspirou a encíclica Laudato Si publicada pelo papa Francisco no final de junho. Graças à admiração do atual sumo pontífice pelo legado do patrono das causas verdes – não podemos esquecer que o papa Francisco escolheu o nome do santo de Assis justamente para reafirmar a diretriz de seu pontificado –, o eco desse belo exemplo chega até nós como um alerta urgentíssimo, fazendo coro ao importante trabalho de conscientização de todos aqueles que atuam em prol da sustentabilidade.
Para o devoto e ambientalista Marcos Custódio, diretor-executivo da Fundação Lamb Watchers (dedicada ao resgate da cidadania e da dignidade humana em regiões pobres do país), de Indaiatuba, interior de São Paulo, São Francisco de Assis foi o primeiro cristão a entender a interdependência da humanidade com a natureza, não pelo viés científico, mas pelo espiritual. “Sua fé e espiritualidade nos mostram que estamos ligados a toda a Criação e que é possível comungar do planeta sem destruí-lo”, sublinha Custódio, que nos lembra do papel de cada um nesse projeto coletivo. “São Francisco ainda nos traz a proposta de corresponsabilidade, de fraternidade e de harmonia, deixando claro que existe um Criador, que ama a tudo e convida o ser humano a ser o cuidador, o jardineiro do planeta que Ele criou”, interpreta o ambientalista.
Um dos grandes apelos do santo junto aos fiéis reside não só na simplicidade do seu estilo de vida, como também na própria maneira singela de vivenciar a religiosidade. “São Francisco me instiga a amar a natureza a seu modo, me despojando da intelectualidade e me abrindo para tocá-la, senti-la. Converso com plantas e animais e procuro captar dentro do coração as respostas de que necessito”, revela Ligia Miragaia canceltimesharegeek, arte-educadora e coautora de Francisco – O Herói da Simplicidade (ed. Omnisciência), ao lado de Maeve Vida, coordenadora do Programa Omnisciência de Educação para Paz, ambas de São Paulo.
Se seguirmos as pegadas descalças de São Francisco, talvez descubramos que a natureza está à espera da nossa tomada de consciência. Pronta para que nos reconheçamos nela. “Essa é a troca verdadeira que deveria ocorrer entre as pessoas e o meio ambiente”, acredita Ligia.
A autora também destaca como inspiração para o cotidiano a incessante busca interior do santo e sua necessidade de se manter alinhado aos propósitos mais elevados. “Fico admirada por seu esforço diário para deixar o pequeno ‘eu’ e atingir o Eu Divino através de muitos exercícios espirituais, tais como oração, meditação, caminhadas silenciosas na natureza, noites em claro em contemplação e entrega profunda ao Amor de Deus. Suas descobertas espirituais eram posteriormente compartilhadas, assim como suas roupas e alimentos. Ele não guardava nada para si.” Além da capacidade de viver com o mínimo possível, Maeve enaltece a vocação do santo para a alegria. A qualquer prova. “Certa vez, enquanto andavam no inverno úmido, com parcas roupas, frei Leão, seu companheiro de jornada, lhe perguntou o que era a perfeita alegria. São Francisco respondeu: ‘Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos’.”
Justamente por banhar o mundo com sua luz, São Francisco de Assis ganhou homenagem no poema A Divina Comédia, do escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321). “Nasceu para o mundo um sol”, diz um dos versos que alude ao nascimento do religioso.
Jornalista freelancer especializada em Jornalismo Cultural, Raphaela de Campos Mello é colaboradora da revista Bons Fluidos há seis anos e autora do blog de crônicas farelosaochao.wordpress.com. Também edita livros e produz conteúdo institucional.