Projeto de professora de São Paulo é um dos vencedores do Prêmio Educador Nota 10
O bater seco das portas, o abrir e fechar das torneiras, a marcha desenfreada dos pés das crianças. Em seu livro O Ouvido Pensante (Ed. Unesp, 1991), o educador e músico canadense Raymond Murray Schafer afirma que o mundo deveria ser tratado como “uma vasta composição macroscópica formada por qualquer coisa que soe”. Inspirada pelo conceito de “paisagem sonora”, a professora Lidiane Cristina Loiola Souza empreendeu uma viagem musical com seus alunos.
“Levei as crianças para os espaços da escola, pra que elas ouvissem os sons que há nos ambientes. Queria que eles entendessem que o som não está só dentro do rádio, mas que está por todos os lugares”, conta a educadora.
Trabalhar a música com os alunos era um desejo antigo de Lidiane. No entanto, ela confessa que, por não tocar nenhum instrumento, acreditava que não poderia tematizar essa linguagem em sala de aula. A situação mudou depois de um curso de formação na prefeitura de São Paulo sobre o assunto.
“Descobri que dá para trabalhar a música com qualidade e intenção, pensando nela como linguagem, mesmo sem os conhecimentos técnicos. Na Educação Infantil ainda se usa muito a música como ritual de passagem e eu não queria trabalhar assim. Fui atrás de outros cursos, comprei livros sobre o tema, montei o projeto e coloquei em prática”, relembra.
O projeto ganhou o nome de “Paisagem sonora e exploração musical” e levou Lidiane para o ranking dos 10 professores vencedores do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10 de 2013.
Mapa dos sons
Lidiane iniciou as atividades levando as crianças para passear por diversos ambientes da Escola Municipal de Educação Infantil Papa João Paulo II, na Zona Oeste de São Paulo. O intuito era desenvolver a chamada “escuta atenta”. Aos pequeninos, cabia a tarefa de sentar e escutar atentamente os sons que escutavam. A educadora os conduziu pela descoberta do mundo das notas, melodias e cadência das coisas, mostrando a eles que praticamente tudo tem som. “Hoje, nós vivemos em um ritmo muito acelerado e nunca temos tempo pra prestar atenção no som ao redor. Por isso, expliquei a eles o significado de paisagem sonora e pedi que tentassem prestar atenção ao máximo de sons que pudessem”.
Do pátio da escola eles seguiram para outros espaços e criaram um mapa sonoro desse caminho. Após a escuta atenta, as crianças registraram aquilo que ouviram por meio de relatos e desenhos. “Eles citaram e desenharam coisas como o som do riozinho, da balança, do vento”, lembra a professora.
A música das coisas simples
“Agora vocês vão escolher um objeto da sala que produz algum som”. Assim começou mais uma etapa do projeto. Os alunos tinham que escolher objetos comuns dentro da sala de aula, explorar os sons que produziam com eles e se sentar à roda pra revelar aos demais colegas os achados sonoros. “Brinquedos, livrinhos, bonecas… Eles ficavam testando esses objetos, uns batiam com as mãos, outros no chão. No final, pedi que eles reproduzissem o que haviam encontrado.”
Como toda orquestra que se preze precisa de um condutor, a brincadeira seguinte foi “Você é o maestro”. As crianças foram divididas em grupos de acordo com os “naipes” de sons que inventaram – aqueles que usaram as mãos ficaram de um lado e os que produziram no chão, de outro. Inicialmente, os alunos foram guiados pela professora e, após uma explicação sobre a função do maestro e por que ele se dirige a determinados grupos de instrumentos, foi a vez de as crianças liderarem a orquestra.
“No começo, eles não viam a hora de pegar e tocar o objeto. Depois, começaram a refletir sobre isso e a respeitar os comandos do maestra. E também passaram a entender que o som poderia ser feito com qualquer coisa, desde que houvesse intenção”, conta Lidiane.
Códigos da música
Na etapa seguinte, as crianças conheceram os sons realizados com o corpo e com objetos do cotidiano, por meio dos vídeos dos grupos Barbatuques, Grupo Experimental de Música (GEM) e Stomp.
O próximo passo foi compreender a função da partitura como código de representação e leitura da música. Mas ao invés de apresentar aos pequenos a intrincada partitura convencional, Lidiane desenvolveu códigos mais simples. “Expliquei que uma partitura é um registro gráfico de som que todo mundo que lê sabe que aquela nota é um dó, um ré e assim por diante, e disse a eles que nós iriamos criar a nossa.”
Da criatividade das crianças nasceu uma partitura própria para ser interpretada pelos pequenos. Instigados pela professora, as crianças citavam os sons que queriam incluir – como “estalar os dedos” ou “bater palmas” – e também quantas vezes. Os próprios alunos desenharam os símbolos gráficos no quadro. “A partitura virou uma peça musical que tocávamos seguindo o esquema que eles haviam desenhado. Expliquei que mais ninguém entenderia aquela partitura, mas todos da sala sim”, conta a professora.
Criando som
Na parte final do projeto, a educadora trouxe para a sala de aula diversos instrumentos musicais. “Deixei que eles tocassem como quisessem para toda a sala e expliquei que criaríamos nossos próprios instrumentos com sucata”, comenta Lidiane. Para a educadora, essa foi a etapa da qual os alunos mais gostaram. “Houve muita alegria em explorar os instrumentos criados por eles mesmos. Foi muito significativo pra todos”, afirma.
Artes e Educação
Com 11 anos de carreira na Educação, Lidiane conta que, desde pequena, manifestava inclinação tanto para o ensino como para as artes. “Principalmente artes cênicas! Na infância, eu era sempre a professora, nunca a aluna. Eu dava aulas de reforço para meus coleguinhas. Eu não me imagino fazendo outra coisa”, diz a educadora.
O conhecimento mais amplo de vários tipos de arte veio no curso de magistério. “Eu tive um professor que me inspirou muito. Ele nos levava para ver exposição e espetáculos. Na época, eu pensava que ele era maluco, mas quando comecei a dar aulas entendi que ele estava além”, relembra.
Depois do Magistério, Lidiane formou-se em pedagogia e cursou pós-graduação em linguagens da arte. A educadora conta que o Prêmio Educador Nota 10 veio brindar uma carreira de 15 anos de dedicação. “Eu me senti reconhecida e espero que meu exemplo inspire outras pessoas a tentar realizar projetos”, afirma.
Lidiane crítica o uso limitado das artes na Educação Infantil. ”A música está em nossas vidas desde antes de nascermos e, na Educação Infantil, o significado é muito latente. O trabalho com a linguagem musical nessa etapa precisa de mais significado próprio e não apenas aparecer atrelado a outros processos”.
Para ela, é preciso mais reconhecimento e infraestrutura. “Nunca tive uma sala de artes. Os professores têm que se virar em 45 minutos de aula, mal os alunos pegam nos pincéis e já têm que guardar”, lamenta.
Fonte – Divulgação/ Fundação Victor Civita